RELACIONAMENTO E INTIMIDADE: um elo
Texto da Psicóloga Dabda Borba. Publicado na editoria Saúde Mental da 29ª edição da Revista Arrivati em dezembro /23
A intimidade é o traço diferencial de um relacionamento amoroso ou conjugal na comparação com os outros tipos de relacionamentos que experimentamos e vivenciamos em nosso dia a dia. E na prática de minha profissão me deparo com essa questão: os relacionamentos amorosos, um dos principais assuntos analisados em sessão.
Mesmo na correria do dia a dia onde muitas vezes releguemos isso a um segundo ou terceiro plano de importância, o AMOR segue sendo crucial para a felicidade pois somos seres sociais. Somos seres em relação e isso está ligado a nossa essência enquanto indivíduos sociais. Ressaltando que o amor por si mesmo, tão essencial para o vínculo afetivo também emerge de uma relação dual (bebê-cuidador) logo o outro está presente, afinal, a relação com o mundo começa a partir da relação com mãe.
No amor a dois existe o diferencial do desejo. Desejo, aliás, é uma palavra importante quando se quer refletir sobre relacionamento e intimidade. E o psicanalista Sigmund Freud é referência ao abordar essa questão em obras como O Mal-Estar na Civilização, Totem e Tabu e tantas outras que versam sobre o tema. Bem como Lacan que destaca que o desejo deve ser discernido da necessidade e também da demanda. Ele está, para o autor, entre elas e tem uma relação intrínseca com a incompletude, com a falta. Com um apelo, um pedido que esconde e indica uma demanda, faz-se a tentativa de alcançar um preenchimento que, nessa concepção, está sempre além.
Saber identificar o que desejamos ou o que realmente nos dá prazer; autoconhecimento; ser capaz de saber o que se quer, onde se quer chegar com uma relação é importante quando nos aproximamos de alguém para dividir nossa intimidade. É a partir disso tudo, do autoconhecimento proporcionado pela autoanálise e pela psicologia, que podemos estar livres e desimpedidos para termos relações saudáveis que não nos intoxiquem.
Sendo que muitas vezes os grilhões que nos prendem e os nós que nos amarram em nossas relações conjugais estão dentro de nós mesmos, possuindo origem nos traumas e frustrações de um passado que insiste em se fazer presente, inclusive impedindo os nossos projetos de futuro de se realizarem.
Mas, como desenvolver a intimidade numa relação conjugal? Essa é uma questão de muita abrangência na terapia de casal. Muitas vezes impacientes consigo e com o(a) outro(a), os (as) pacientes trazem uma série de questões que em muitos casos remontam a situações familiares vivenciadas no passado.
‘AFINIDADES ELETIVAS’: O AMOR NOSSO DE CADA DIA...
Ponto importante ao se escolher alguém para viver junto (e é interessante que em nosso tempo temos a liberdade de escolha, algo que não existia sobretudo para as mulheres no passado, quando os casamentos eram arranjados conforme as inconvenientes conveniências sociais e dotes familiares) é o que o escritor Johann Wolfgang von Goethe denominou de “Afinidades Eletivas”. Escrito em 1809, o livro ainda se mostra bastante contemporâneo por ter abordado um tema sempre atual: o amor.
Considerado um dos romances mais sutis e penetrantes da literatura ocidental, Afinidades Eletivas aborda quais são os elementos que possuem interesse comum para um casal. O que “afiniza” duas pessoas? Quais são as conexões estabelecidas entre elas? O que gostamos de fazer juntos? Quais são os programas, hobbies e passatempos que podem conectar dois seres individuais? Quais são os projetos que possuem interesse comum? Quais são os laços de afeto e ternura que unem e que sustentam uma relação, permitindo que ela enfrente situações adversas e momentos de instabilidade?
Isso é importante de ser pensado e considerado porque apenas a “química da paixão” não sustenta uma relação; ela precisa ter sustentabilidade (essa palavra, tão em moda nos dias atuais, também é importante quando pensamos em relacionamentos amorosos).
DIVIDIR PARA MULTIPLICAR: PROSPERIDADE DO AMOR
Qualquer relação amorosa pressupõem uma tríade; eu, tu, nós (e é também para construir um nós a partir da soma de um eu e um tu que servem as relações conjugais). Mas, veja bem: estamos falando em somar e não em diminuir, subtrair, apagar, castrar... Estamos falando em multiplicar, o que exige que saibamos dividir, elo necessário para a prosperidade conjugal. Uma relação conjugal que diminui as pessoas não é uma relação saudável, está toxicidade, pode ser danosa para as pessoas e prejudicial para a saúde mental de ambos os envolvidos. Estudo do IBGE com base nos dados dos cartórios mostra que o tempo médio de duração do casamento no Brasil diminuiu 15% na última década. Em 2010, as uniões estáveis duravam em torno de 16 anos. Em 2021 a duração entre o casamento e o divórcio diminui para 13 anos. São Paulo é o Estado que registra o maior número de divórcios. Rio Grande do Sul é o quarto com mais separações, logo atrás do Paraná e Minas Gerais. O menor número de divórcios é no Amapá. Podemos atribuir este aumento a maior liberdade feminina conquistada pelas mulheres nos últimos 50 anos, tanto intelectual, moral quanto financeira.
‘COMO SE CASA, COMO SE MORRE’
Por fim, é preciso apontar alguns valores que podem ser considerados crucias para alicerçar relações saudáveis nas quais seja possível desenvolver a intimidade (de almas e de corpos). Antes de citá-los, importante assinalar que é a intimidade que possibilita o desenvolvimento da sexualidade (e não podemos ter vergonha de falar de sexo, afinal ele é elemento sempre presente nas relações conjugais, sejam elas quais forem e de que tipo forem).
Mas hoje vamos falar do amor, pois nesses tempos de ódio o “amor é um ato revolucionário”, como cantou Chico César. E numa sociedade em que a vigilância e os prejulgamentos imperam categoricamente, para amar por vezes é preciso ter coragem... Por hora basta deixar assinalado que o sexo (o prazer sexual alimentado pelo desejo e pela libido) é aspecto crucial para o êxito de uma relação amorosa...
Entre os principais valores (que não tem preço) capazes de alicerçar uma relação conjugal podemos citar o respeito, a verdade e a confiança. Podem ser considerados como a “santíssima trindade” do amor: a tríade que garante a prosperidade de uma relação conjugal. Sem eles, arrisco a dizer que toda e qualquer relação está fadada ao insucesso. A não ser que seja um mero negócio e que as partes aceitem a viver dessa forma; o que não raro acontece: casais que só não se separam por questões sociais como a complexidade da partilha dos bens pois o AMOR já tornou-se amizade e sim a diferença entre eles.
Nesse ponto cito outro autor que se debruçou sobre o tema: Émile Zola. Em Como se Casa, Como se Morre, o escritor francês narra situações um tanto embaraçosas que vão se desenvolvendo entre os casais e que muitas vezes sufocam o amor, matando as paixões.
O livro narra uma situação emblemática de um casal que trabalha junto em seu comércio e que mesmo nos momentos de intimidade fala de negócios e de dinheiro, colocando os rendimentos financeiros num patamar exagerado. Mesmo que o dinheiro seja importante e indispensável na vida a dois, as cifras não podem ser divinizadas a ponto de ensombrecerem o amor, o afeto, a ternura e as paixões. Existem momentos e lugares para tudo numa vida conjugal. E talvez não seja no quarto, na hora do carinho e do beijo, que se deva falar de dinheiro e das dificuldades nos negócios.
‘NADA TEMOS A TEMER EXCETO AS PALAVRAS’
Por falar em palavras, é preciso ter cuidado com o que se diz e com o que se deixa de falar. Muitas vezes, no calor da discussão, sem pensar dizemos coisas pesadas. Coisas impensadas que podem intoxicar uma relação a ponto de marcar negativamente para sempre, a mágoa tão difícil de ser elaborada. Mesmo que peçamos desculpas (o que é importante), muitas vezes o que foi dito fica gravado na mente e fixado no espírito.
É como diz o escritor Ruben Fonseca em O Caso Morel: “nada temos a temer, exceto as palavras”. Aviso importante aos marinheiros de primeira viagem que se aventuram no mar do amar: mesmo nos momentos de turbulência é preciso se manter firme e não perder a direção. E todo marinheiro sabe que não se pode alterar as condições do mar, mas se pode controlar o barco, cuidar para que siga a navegar sem naufrágios inesperados, mesmo que seja necessário mudar a direção e ir a favor do mar até que o mesmo se acalme e então sim se possa virar o leme.
É neste ponto que entra o RESPEITO, o primeiro dos três valores a pouco citados. Muitas vezes confundimos as coisas e achamos que a intimidade que temos com nosso(a) parceiro(a) nos permite dizer e fazer coisas que ferirão o outro. Não é assim que funciona; estabelecer limites é importante e esse excesso de intimidade pode levar a perda de uma intimidade tão necessária para o florescimento do amor. Respeitar significa ter dignidade e apreço pela pessoa com a qual dividimos os principais momentos de nossas vidas.
Mas o respeito exige algo mais: a VERDADE. Outro ponto crucial para uma relação conjugal e a prática psicanalítica mostra que a mentira está presente em uma vasta gama de relações, nas quais habitam as traições e falsidades. Importante lembrar a frase de Renato Russo: “Mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira...”
É exatamente a conjugação do respeito e da verdade que podem conduzir a um elemento imprescindível para as relações a dois: a CONFIANÇA. A desconfiança é uma praga que enche de inço a lavoura onde cultivamos a amor. Porque é importante que se tenha claro uma coisa: o amor é uma construção. Coletiva, relacional. E só as relações que cultivam o amor estão destinadas a prosperar com serenidade, trazendo tranquilidade e um ambiente saudável que nos possibilite desenvolver o melhor de nós mesmos e (como cantou João Gilberto) “amar em paz...”
‘AMO-TE NÃO SÓ PELO QUE ÉS, MAS PELO QUE DESPERTAS EM MIM QUANDO ESTOU CONTIGO’
Afinal, como escreveu Gabriel Garcia Márquez em Do Amor e outros Demônios: “Amo-te não só pelo que és, mas pelo que despertas em mim quando estou contigo”. A frase, possui um sentido profundo e verdadeiro. A partir dela, podemos ficar atentos para um aspecto importante numa relação e na busca por um(a) parceiro(a): os sentimentos que ele(a) desperta na gente. Existem relações que despertam o pior de nós mesmos e outras, podem despertar o melhor de nós mesmos. São as relações que despertam o amor (enquanto equilíbrio e harmonia entre duas pessoas) que possibilitam o desenvolvimento de uma intimidade sadia. O amor que é pressuposto, condição sine qua non (sem a qual) não pode haver “casamento”, seja ele oficial, formal ou informal. O amor é cláusula incondicional de uma relação conjugal. É elemento essencial, condição indispensável e fator determinante para todo relacionamento. Até porque quem ama respeita. E quem respeita é honesto, verdadeiro, transparente. E numa relação conjugal, mais do que parentes, precisamos ser transparentes...
Como canta Nando Reis: “Eu só queria que você cuidasse, um pouco mais de mim como eu cuido de você / Cuidar é simplesmente olhar, pr’um mundo que você não vê / Pra medir o amor não existe cálculo, um mais um pode não ser dois / Sentir a pura liberdade, desejo que não é sonho é mera ilusão / Se não sabe, se afaste; Se ainda cabe, me abrace / Só ligue se tiver vontade, só venha se quiser me ver / Mentir é coisa de covarde, de quem precisa se esconder / O sangue é o rio que irriga a carne, a alma é a margem e o contorno”...
Dabda Borba – Psicóloga Clínica – Graduada em Psicologia pela Universidade de Caxias do Sul – Pedagogia pela UNAR – Pós-Graduada em Abordagem Psicanalítica pela FAVENI. Cursando Sexologia em 2023.
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